Lobito 15 Fevereiro de 1976

Como já atrás ficou dito, a UNITA ocupou os territórios de parceria com a FNLA; também ficou descrita a forma como a UNITA se destacou deste Movimento, ficando, a partir de 25 de Dezembro, senhora absoluta do Centro e do Sul. Ora, se enquanto a presença da FNLA de algum modo conteve os ímpetos vandálicos dos senhores da UNITA, desde aquela data estes ficaram inteiramente livres para intensificar as depredações e violências que já os tinha caracterizado. E assim aconteceu.  


Cresceram mais pilhagens organizadas, as ocupações de residências, as destruições do que não podiam levar, os roubos de automóveis; a "nacionalização" por parte do SINDACO, de estabelecimentos comerciais e industriais, com apropriação de todas as mercadorias e valores em cofre, sob o pretexto de melhor servir o povo; as prisões de pessoas à luz do dia ou pela calada da noite, arrancando-as de suas camas. As prisões... oh! as prisões.

Desde há muito se sabia que várias pessoas estavam detidas. De quando em quando uma era solta, mas logo substituída por duas ou três. Como cárcere utilizavam-se alguns edifícios sendo o principal um prédio de 11 andares no Bairro da Caponte, recentemente construído e previamente despejado de alguns inquilinos que já o habitavam. Pelos que retornavam à liberdade também se sabia que, por vezes, havia espancamentos e uma ou outra tortura, geralmente de fome, de sede, ou total de mobiliário, roupas e sanitários.
Sabia-se igualmente que após as prisões, até certo ponto naturais, de membros activistas do MPLA, outras e outras se seguiam de indivíduos sem qualquer implicação política; uns por mera delação de um vizinho, por razões pessoais, outros por haverem resistido ou apenas verberado a conduta dos espoliadores.

Ora coma fuga da UNITA há cinco dias, veio a nú o inacreditável. Inacreditável para todos quanto aqui vivem e não se aperceberam da tragédia que se desenvolvia entre bastidores.
A dez e a quinze quilômetros para o interior, em zona agreste e acidentada, em sítios próximos mas não visíveis da estrada que conduz ao planalto, foram encontrados dezenas de cadaveres de brancos, pretos e mulatos, insepultos e, por vezes, em adiantado estado de decomposição!
Dizem-me que num ponto contaram 52 cadáveres, noutro trinta e tal; afirma-se, talvez com exagero, que o número de vitimas é passante de 300, pois dizem que há algumas valas aterradas e das quais se ignora ainda o número de desgraçados que encerram.
Vão-se conhecendo promenores da UNITA, pelas 2 horas da madrugada, três detidos foram retirados da prisão e conduzidos numa viatura para um dos locais de imolação. Eram eles: um mulato, que apenas se sabe chamar-se Lopes, um branco de nome Fidalgo, um operário na Fábrica de Cimento e preso há mais de um mês; e outro branco, Domingos Ramalho, escriturário no Caminho de Ferro, rapaz pacato e honesto, nada intrometido, e que o obrigaram a ser protagonista na tragédia.

Andados uns 15 kms, o chefe dos soldados (um oficial que se supõe ser o comandante da PM) mandou apear o mulato. A noite estava escura e apenas se desprendia uma vaga claridade dos farolins do veículo, apagados que foram os farois. A uma ordem, logo ali a uns 4 ou 5 metros, o mulato foi abatido a tiro. Seguiu-se-lhe o Fidalgo; mas, ou por a visibilidade ser muito fraca ou por os soldados executadores terem tido um derradeiro rebate de consciência, o certo é que a 5 metros de distância (diz o Fidalgo, mas é supor que tenha sido maior a distância), falharam o alvo e só um projectil raspou de leve o lábio inferior da vitima que, não obstante, se atirou logo para o chão fingindo-se morta.
Era a vez do Ramalho, os mesmos trâmites, os mesmos tiros e... novamente falharam. Mas o Ramalho, petrificado, deixou-se ficar de pé; a sua conduta honesta não lhe sugeriu pronto ardil. Imprecações do comandante... nova ordem... novos tiros... novo falhanço! O Ramalho, então, como estremunhado, deixa-se cair como morto. Mas nem uma beliscadura sofreu.
Os soldados, sem verificarem os resultados, limitaram-se a rolá-los com os pés pela ravina e afastaram-se.
O Fidalgo e o Ramalho só se levantaram depois de o carro ir bem longe. Verificaram o mulato: estava morto.
Começaram então, o regresso à cidade ao longo da estrada que se esticava por 15 kms. Regresso de uma viagem que, afinal, não foi só de ida.
Regresso mais desoprimido, mas não alegre, que a alma ainda estava amarfalhada. Vez por outra a estrada iluminada pelos farois de carros que passavam; atiravam-se para a valeta, escondendo-se como marginais que a sociedade tinha irradiado, não fosse, por fatalidade, repetir-se a cena mais a sério, já que a primeira resultou em mero ensaio.

Ao despontar a aurora chegaram extenuados à orla da cidade e, com a luz do dia, veio o receio de serem descobertos. À cautela, resolveram ficar ali durante todo o dia e aguardar os favores da noite. Internaram-se no baldio, mas o terreno era árido, ainda que acidentado, e pouco ajudava à sua ocultação; mas lá se acomodaram cobertos com ramos de arbustos para iludir as vistas e se protegerem do rigor so sol. E esperaram a noite durante um dia interminável mas antes dela, veio a fome e a sede, sobretudo a sede.
Dias depois a UNITA foi desbancada.

Este o relato do Fidalgo que chegou ao meu conhecimento. O Ramalho, esse, ainda não se recuperou do trauma.