Lobito 3 Janeiro de 1976

O Ano Novo passou sem novidade. Cada qual celebrou em sua casa. como pôde, à meia-noite da transição de ano, mas sem alarido. As alegrias de hoje são de duvidosa espontaneidade.
É minha convicção de que o que mais inquieta, o mais que mais atormenta esta gente (branca), além das carências da vida (que possivelmente mais adiante se analisarão), além da permanente insegurança de pessoas e bens, é o isolamento em que se encontra.
A maioria dos que ficaram são homens, que das mulheres e crianças mais 90% seguiram para Portugal aproveitando a ponte aérea. E esses homens e todos os outros afinal, não têm qualquer noticia dos seus familiares; alguns conhecendo a precaridade de meios de subsistência que a família levou, quase sempre apenas a roupa que vestia, prevêem e temem o pior.
Desde há cerca de dois meses que não há uma comunicação terrestre, marítima ou aérea. Vivemos isolados como uma ilha afastada da rotas. Nem mesmo há qualquer ligação com Luanda; ninguém sabe, ao certo, o que se passou lá, afora as peneiradas noticias que as emissoras do MPLA irradiam.
Do exterior bebemos avidamente as notas radiofónicas do que se passou no mundo, mas tudo generalidades, nada sobre a família de cada um. Mas são novas sem resposta, sem diálogo, como um doente que, acamado, ouve tudo e compreende tudo o que se passa à sua volta mas está impossibilitado de falar ou gesticular. É realmente exasperante.
E são milhares e milhares de portugueses nesta situação; portugueses que parece já não existirem para o Governo de Portugal. Os fautores do Acordo de Alvor e os seus sequazes, auto-legitimados como representantes do povo português, fecharam o processo, assunto encerrado. Lavaram as mãos e foram dormir na tranquilidade de espírito de dever cumprido.

Todos os países do mundo, mesmo os mais falhos de sensibilidade, cuidam do apoio, de amparo, ainda que apenas moral, dos seus súbditos que se encontram no exterior, mormente que se encontram dramática situação. É mais que sentimento de solidariedade humana, é imperativo paternal. E quantas vezes bem poucos são os súbditos a proteger.

Que tem feito Portugal pelos que, até de harmonia com os encorajamentos do seu Governo, permaneceram em Angola ? Que se saiba, nada. Nada. Nada, Nenhum esforço no sentido de garantir a sua segurança; nenhuma tentativa de. mesmo indirectamente, lhes facilitar meios de comunicação. Nem organização consular, nem outra representação. Ao invés, retirou apressadamente as suas Forças Armadas mais cedo cerca de quatro meses do que estava acordado e abandonou, pura e simplesmente, Angola e todos quantos cá ficaram.

Enquanto o Exercito Português se conservou em Angola (até Outubro passado), e embora nos últimos tempo nenhuma protecção tivesse tomado para com os portugueses ainda residentes, não nos sentíamos inteiramente desamparados e havia sempre a esperança da sua intervenção defensora caso a situação se tornasse mais grave e perigosa. Mas depois da sua apressada e prematura retirada, foi o vazio, foi o completo abandono.
Sentimo-nos repudiados, como filhos que a mãe rejeitou.

Dir-se-á que o Governo Português não reconheceu ainda (apenas oficialmente, diga-se já) a soberania a nenhum dos Movimentos, pelo que, e em consequência, não pode haver relações diplomáticas. Desculpa burocrática para iludir *formalistas, como se as vidas humanas fossem irrelevantes e se pudessem pautar pelo jogo da convenções.

Todo o mundo sabe que há muitos meios de ajuda à margem das rotinas oficiais. Só é necessário boa vontade e isso é que falta ao Governo Português que, ao jeito dito progressista, se mecanizou, se insensibilizou.

Os brancos de Angola são agora apátridas, são até indesejáveis para onde quer que se voltem. Renegados pela sua Pátria, são também estrangeiros na terra que haviam feito sua e onde muitos nasceram.
Ganharam o estatuto de ciganos. Eu e a minha família somos agora os novos ciganos de África.