Lobito 7 Fevereiro de 1976

Afinal, nada de vulto aconteceu até hoje. As linhas de combate continuam mais ou menos estabilizadas, se bem que alguns boatos, aliás contraditórios, refiram avanços ou recuos numa ou noutra frente.
Entretanto, anuncia-se que estão a ser recrutados mercenários em Inglaterra, França, Alemanha Ocidental e Estados Unidos; tudo para combater MPLA-URSS-Cuba, mas parece que serão contingentes reduzidos.
O certo é que, desde há dias, já se encontram alguns franceses no Lobito colaborando com a UNITA. Contudo, nota-se certa inquietação entre os dirigentes deste Movimento, o que os tem determinado a virem à emissora aconselhar a população a ter calma "que a situação embora grave, não é desesperada". Isto, nas entrelinhas, quererá dizer que as forças do MPLA terão feito progressos e que já se admite não se poder suster o avanço.
Consta também, a corrobar esta hipótese, que os comandos da UNITA se têm afobado ultimamente a mandar afinar e lubrificar os carros que detêm , e a roubar mais alguns dos que ainda restam nas mãos de seus legítimos donos: e já estamos habituados a adivinhar, nestas atitudes, uma preparação para eventual fuga iminente.

Vejamos agora o que, entretanto, se passa em Luanda.
Quase nada se sabe aqui o que lá terá acontecido, pois não há outra fonte de informação que as emissoras radiofónicas, e estas rigorosamente controladas, só emitem aquilo que melhor lhes convêm. Por isso, causou alguma surpresa uma revelação, ouvida hoje do presidente Agostinho Neto, de ter havido, na véspera, uma manifestação popular em frente ao Palácio do Governo, em protesto contra a suspensão, ocorrida dias antes, do programa radiofónico intitulado "Kudibanguela".
Este programa, de objectivo inteiramente político, fazia a apologia em todos os tons do MPLA e, naturalmente, vituperava os outros Movimentos. Ultimamente, porém,  os fazedores do programa mostravam-se mais agressivos não só contra os adversários mas até contra os do seu próprio partido, deixando entender que se estava a formar uma facção radical.
É notório que as estruturas deste Movimento se apoiam, desde o inicio, em elementos da pequena e média burguesia, constituida, como já anteriormente foi dito, por funcionários, estudantes, operários qualificados e outros trabalhadores sem grandes aspirações de promoção de trabalho.
Mas, como Movimento Popular que se apregoa, carece de apoio das massas, pois nelas iria buscar a força da sua vitalidade. Por isso, criou o dito Poder Popular que, como é bem de ver, fundamentalmente não passa de uma muleta, de instrumento, para o exercício do seu próprio poder. Porque as massas não pensam, as massas não têm vontade própria, as massas são simplesmente conduzidas, cantando em coro com os seus mentores. E então as massas africanas.

Todavia, numa elite que está no comando, surge alguém que, sobrestimando seus méritos ou sobrepujando-se por insaciável ambição, não se conforma com o lugar que lhe coube na hierarquia. Daí o inicio de uma cisão fazendo reverter em proveito próprio a correntes que seu relativo poder manobra.
É o que jugo que tenha acontecido com os (ou o) organizadores do programa "kudibanguela" - segundo me esclareceram este termo quimbundo significará "A nossa luta", possível adaptação do brado hitleriano "Mein Kampt".
Desde há algum tempo que naquele programa se vem proclamando a necessidade de total subordinação ao Poder Popular como lídima expressão de justiça social; que a burguesia tem seus dias contados como exploradores do povo; que se deve combater a burguesia como inimiga dos operários e camponeses... e mais clamores neste estilo.
Paradoxalmente estes gritadores são, eles mesmos, autênticos burgueses, ou vivendo como tal; mas parece que minguém repara nisso.
Nunca pude conceber o funcionamento de uma sociedade só de camponeses e operários. No dia em que as mãos calejadas do camponês manejar os papeis dum departamento estadual, ou enfarruscado fato de ganga do operário tomar assento nos cadeirões do poder, nesse dia aquele camponês ou este operário deixarão de o ser para ser verterem em burgueses (na excepção que eles próprios definem). É da velha sabedoria popular: Não sirvas a quem serviu, nem peças a quem pediu".
Assim e no fundo, tudo se traduz, não na eliminação da burguesia, mas na instituição de uma burguesia rotativa: tirem-se de lá aqueles burgueses que nos exploram e ponham-se lá outros dos nossos. Claro, na peregrina hipótese de ser possível recrutar essas competências na massa anónima; porque esses "outros dos nossos" passariam á posição de burgueses... fechando-se o ciclo e continuando na dita exploração do povo.
Seriam de etiologia diferente, sem dúvida, mas o que importa será a vivencia burguesa, e esta parece inerente à função de governante.

Amiudades vezes a História mostra-nos governantes oriundos do campesinato ou proletariado, ma não foi, seguramente, a qualidade de proletário ou camponês que os elevou, antes a competência pessoal, as qualidades de chefia e outras virtudes. Isto em todos os regimes políticos, não sendo essencial, estar-se em regime marxista para que isso aconteça.
Pois o programa "Kudibanguela" desatou a zurzir os seus próprios dirigentes e todos os que dentro do Movimento ocupam posições de destaque, acusando-os de não servirem o povo (e até teriam razão).
Com isto procurariam, sem dúvida, fomentar dissidência, do mesmo passo  que se arvoraram em paladinos do Poder Popular na mira de condigna recompensa futura. Semear para colher. Simplesmente, como a sementeira foi de ventos a colheita foi de tempestades.
Resultado: programa suspenso.