Lobito 17 Fevereiro de 1976

Anteontem, domingo, pelas 5 da tarde, realizou-se o solene hastear da bandeira no Palácio do Governo.
A população havia sido convidada insistentemente pela rádio durante toda a manhã. Não fui. Angola já não é a terra que amorosamente abracei como minha, posto que nela tenha nascido a minha descendência.

A minha presença neste país está quase desnudada de apegos sentimentais, deixando-me apenas o travo de ter consumido trinta e tal dos melhores anos da minha vida numa terra que louca ambição dos homens tornou ingrata.

Agora sinto-me estrangeiro. Estrangeiro de onde ?
Nem já sei, mas sem dúvida estrangeiro.
Por isso, não me sinto obrigado ao cumprimento de deveres cívicos.
Por isso, não fui à solenidade. Mas contaram-me.

Tirante a formatura militar, ocorreram poucas centenas de pessoas: bancos e mestiços. Poucos pretos. Algumas senhoras.
No momento da subida da bandeira (do MPLA) ao topo, houve olhos que choraram; de senhoras, mais sensíveis.
Mais tarde, duas delas esclareceram amigo meu:
- Chorei, mas não foi de alegria, antes de tristeza pela maneira como a independência se processou, disse uma.
- Chorei, de saudade pela minha bandeira, desabafou outra.
E quantos outros não terão recalcado as lágrimas...

A bandeira é agora a bandeira do partido adaptada: duas faixas horizontais, vermelha e preta; sobreposto ao centro, em amarelo, o símbolo - meio aro de roda dentada, representando p operário, cruzado por uma catana, a exprimir não só a massa camponesa mas também, talvez, a primeira e rudimentar arma usada pelos militantes na luta contra o domínio português; a encimar isto, a infalível estrela amarela de 5 pontas, símbolo já notório de vassalagem marxista. Reconhece-se, todavia, oportuna a substituição da foice pela catana, já que Angola não é, nem talvez venha a ser, um país notadamente cerealífero.

Durante a noite ouviram-se alguns tiros nos bairros periféricos.
De manhã, veio a saber-se que as FAPLA tinham feito rusgas à caça de elementos da UNITA. E mais alguns mortos vieram acrescentar o necrológio da independência.
Logo na base dos Morros, numa encruzilhada de estradas, cinco cadáveres (4 homens e uma mulher) assinalavam a passagem dos novos hunos; nas ruas de cima mais vitimas caíram.
É já costumeiro que estas tropas (uns e outros) não perdem tempo com simples detenções. Abatem logo, depois se verá.

O Lobito era conhecido em Angola como uma das terras quase inteiramente fiel à UNITA; mas ante os 90 dias de prepotências e atrocidades vividas, deixou de a apoiar.
A entrada do MPLA na cidade veio encontrar um povo se não receptivo, também não hostil. Seria então, optima a oportunidade para, por uma conduta mais humana e compreensiva, cativar simpatias e adesões.
De um modo geral, o povo não discerne o aspecto político dos Movimentos. A sua simpatia vai para aqueles que melhor o tratam e melhor cuidem dos seus interesses imediatos. Comunismo, socialismo, capitalismo, são nebulosas que atrapalham a mente. Actos concretos, estruturas, facilidades de vida, segurança, trabalho sereno, isso sim, são coisas que compreende.

E o MPLA estava ( e está) em melhor posição para lhes dar satisfação. Mas estragou tudo com o inicio de perseguições indiscriminadas, com autentica caça ás bruxas.
O povo já pensa (e com razão) que são todos iguais. E abala, e abandona tudo na busca de lugar mais seguro.

O Lobito continua a despovoar-se.
Nova Lisboa, a 2ª cidade do país, já está relativamente deserta, segundo dizem; serão ruas e ruas sem vivalma -brancos ou pretos, só cães e gatos famintos.
As correntes da migração interna cruzam-se na mata, desorientadas, num êxodo sem destino.
Mas seja tudo em nome da libertação do povo!

E continua a importação de camiões, de tanques, de soldados estranhos para libertar o povo daqueles que também pretendem libertar o povo.
Mas, afinal, a libertação do povo serve como cartaz e escudo de desenfreadas ambições de elites organizadas. De resto, o fenómeno não ocorre só em Angola.